sexta-feira, 18 de julho de 2014

Em busca da SAPIENTIA



Esta reflexão pedagógica alvesiana é uma de suas mais originais, pois a maioria dos professores e pais ainda não haviam pensado na relação entre a casa, a escola e a inteligência. Ambos podem ser emburrecedores ou espaços fascinantes onde as pessoas fiquem mais inteligentes. Mas não se trata de uma inteligência competitiva e narcisista, e sim uma inteligência voltada ao serviço, à partilha, ao prazer e à felicidade. Enfim, uma inteligência a favor da vida. "Nosso sistema de educação dá a faca e o queijo, mas não desperta a fome nas crianças." (ALVES, Revista Nova Escola, Maio de 2002, p.46)
Crítico radical dos nossos sistemas de avaliação e controle de qualidade criados pelo governo e por instituições privadas, propõe uma forma toda peculiar de avaliar a educação.
Num passado recente, quando a Qualidade total em educação era uma espécie de moda em muitas escolas, aproveitou para manifestar o que entende como educação de qualidade.
A natureza e sua sabedoria intrínseca, já tem uma prática de "controle de qualidade" que é feita pelo corpo.

Peixe foge de água poluída, passarinho não faz ninho em chaminé de fábrica, cachorro não come comida estragada. O nenezinho ignorante de tudo o mais, sabe distinguir entre leite bom e leite ruim. Quando a qualidade é boa, ele engole feliz. Se a qualidade é má, ele recusa o bico do seio, cospe e até mesmo vomita. Se a mãe insistir, arrisca-se a levar uma mordida. (ALVES, 1995, p.118)

O que é bom dá prazer. O que é ruim faz sofrer. Essa é a fórmula básica do controle de qualidade feito pela natureza. Em todos os casos, o juiz que dá a palavra final sobre a qualidade de um produto é o corpo, pois só ele tem a capacidade de sentir prazer e sofrer. Só ele pode dizer o que é mau. Exatamente por isso, ele foi dotado pela natureza de delicados instrumentos que testam a qualidade das coisas, cada um deles especializados em um tipo de prazer e de sofrimento. Nossos sentidos nos ajudam nisso.

Mas ao pensar em qualidade total, a imagem que me vem à cabeça é a da BABETE. Lá está ela na cozinha, em meio às panelas, facas, garfos, colheres, temperos, óleos, gorduras, ingredientes de todo tipo, enquanto o fogo crepita no fogão. No caldeirão, a sopa de tartaruga. Pode procurar à vontade: você não a verá consultando um livro de receitas. Livro de receitas é para os aprendizes e não para os mestres. Ela 'prova' a sopa: põe na boca uma colher do caldo a ser servido. Ela fecha os olhos para sentir melhor o gosto. Ao fazer isso ela prova ao mesmo tempo uma outra sopa, sopa que não existe em lugar nenhum, só na sua imaginação de prazer. É a comparação do gosto da sopa que está na colher com o gosto da sopa que está na imaginação que faz com que ela diga: um pouquinho mais disto, uma pitada daquilo... Até que vem a aprovação: a sopa da panela está igual à sopa da imaginação. Qualidade total aprovada. Nada melhor. Pode ser servida. O prazer está garantido. (IBDEM, p.119)

Afinado com a sabedoria milenar, considera que o controle de qualidade é algo que deve ser aprendido com o corpo juntamente com os prazeres e dores que ele sente. Exatamente por isso, sente-se indignado ao ver quanta coisa tão importante é entregue a engenheiros, técnicos, administradores e controladores que avaliam o ensino através de números e estatísticas. No estilo de analogias e metáforas faz uma crítica ferrenha aos tecnocratas da educação, comparando-os a cozinheiros totalmente diferentes de BABETE. Usam ferramentas sofisticadas e acham que, para termos boa comida, basta disponibilizar na cozinha boas panelas, boas facas, bons temperos e fogões de última geração. É claro que essas coisas ajudam mas é necessário que haja uma cozinheira como BABETE, senão a coisa desanda.

É isso que eu sinto ao ver as conversas sobre a qualidade total em educação. As crianças estão lá, para serem transformadas em coisa deliciosa.
Temos, entretanto, que ao invés de sopa de tartaruga, na maioria das vezes o que temos ao final é angu queimado e frango encruado.
Enquanto a gente vai mastigando aquela coisa horrorosa, preparada depois de muito sofrimento, os especialistas com um sorriso amarelo, nos informam: Foi feito em panelas de melhor qualidade, importadas... (IBDEM, p.120)

Critica os sistemas de avaliação de qualidade afirmando que o "angu queimado e o frango encruado" produzido com a mais moderna tecnologia e tendo sido testado pelos mais rigorosos testes de controle de qualidade, demonstram que aos técnicos da educação falta sapiência. O autor considera que os diplomas, especializações, títulos no exterior não são garantia de sapiência.
A técnica e a ciência nos oferecem fogões, panelas, ingredientes e condimentos de sobra. O problema é que ninguém se lembra mais da receita.

Sapiência é isso: o conhecimento do bom sabor que traz felicidade ao corpo. É sábio, no sentido etimológico, é provador, degustador, aquele que havendo se diplomado na cozinha de BABETE, põe a comida na boca e diz: 'delicioso! Está bom para ser servido!' (...)
Assim são nossas escolas, que ensinam tudo sobre o fogo, panelas, ingredientes, condimentos, reações, transformações, mensurações – mas em nenhum lugar ensinam a arte suprema sem a qual não se faz comida boa: a arte de degustar. Nas escolas se fazem cozinheiros castrados de língua.
(IBDEM, p.121)

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