Esta reflexão
pedagógica alvesiana é uma de suas mais originais, pois a maioria dos
professores e pais ainda não haviam pensado na relação entre a casa, a escola e
a inteligência. Ambos podem ser emburrecedores ou espaços fascinantes onde as pessoas
fiquem mais inteligentes. Mas não se trata de uma inteligência competitiva e
narcisista, e sim uma inteligência voltada ao serviço, à partilha, ao prazer e
à felicidade. Enfim, uma inteligência a favor da vida. "Nosso sistema de
educação dá a faca e o queijo, mas não desperta a fome nas crianças."
(ALVES, Revista Nova Escola, Maio de
2002, p.46)
Crítico radical dos nossos sistemas de avaliação
e controle de qualidade criados pelo governo e por instituições privadas,
propõe uma forma toda peculiar de avaliar a educação.
Num passado recente, quando a Qualidade total em
educação era uma espécie de moda em muitas escolas, aproveitou para manifestar
o que entende como educação de qualidade.
A natureza e sua sabedoria intrínseca, já tem uma
prática de "controle de qualidade" que é feita pelo corpo.
Peixe foge de água poluída, passarinho não faz ninho em chaminé de
fábrica, cachorro não come comida estragada. O nenezinho ignorante de tudo o
mais, sabe distinguir entre leite bom e leite ruim. Quando a qualidade é boa,
ele engole feliz. Se a qualidade é má, ele recusa o bico do seio, cospe e até
mesmo vomita. Se a mãe insistir, arrisca-se a levar uma mordida. (ALVES, 1995,
p.118)
O que é bom dá prazer. O que é ruim faz sofrer.
Essa é a fórmula básica do controle de qualidade feito pela natureza. Em todos
os casos, o juiz que dá a palavra final sobre a qualidade de um produto é o
corpo, pois só ele tem a capacidade de sentir prazer e sofrer. Só ele pode
dizer o que é mau. Exatamente por isso, ele foi dotado pela natureza de
delicados instrumentos que testam a qualidade das coisas, cada um deles
especializados em um tipo de prazer e de sofrimento. Nossos sentidos nos ajudam
nisso.
Mas ao pensar em qualidade total, a imagem que me vem à cabeça é a da
BABETE. Lá está ela na cozinha, em meio às panelas, facas, garfos, colheres,
temperos, óleos, gorduras, ingredientes de todo tipo, enquanto o fogo crepita
no fogão. No caldeirão, a sopa de tartaruga. Pode procurar à vontade: você não
a verá consultando um livro de receitas. Livro de receitas é para os aprendizes
e não para os mestres. Ela 'prova' a sopa: põe na boca uma colher do caldo a
ser servido. Ela fecha os olhos para sentir melhor o gosto. Ao fazer isso ela
prova ao mesmo tempo uma outra sopa, sopa que não existe em lugar nenhum, só na
sua imaginação de prazer. É a comparação do gosto da sopa que está na colher
com o gosto da sopa que está na imaginação que faz com que ela diga: um
pouquinho mais disto, uma pitada daquilo... Até que vem a aprovação: a sopa da
panela está igual à sopa da imaginação. Qualidade total aprovada. Nada melhor.
Pode ser servida. O prazer está garantido. (IBDEM, p.119)
Afinado com a sabedoria milenar, considera que o
controle de qualidade é algo que deve ser aprendido com o corpo juntamente com
os prazeres e dores que ele sente. Exatamente por isso, sente-se indignado ao
ver quanta coisa tão importante é entregue a engenheiros, técnicos,
administradores e controladores que avaliam o ensino através de números e estatísticas.
No estilo de analogias e metáforas faz uma crítica ferrenha aos tecnocratas da
educação, comparando-os a cozinheiros totalmente diferentes de BABETE. Usam
ferramentas sofisticadas e acham que, para termos boa comida, basta
disponibilizar na cozinha boas panelas, boas facas, bons temperos e fogões de
última geração. É claro que essas coisas ajudam mas é necessário que haja uma
cozinheira como BABETE, senão a coisa desanda.
É isso que eu sinto ao ver as conversas sobre a qualidade total em
educação. As crianças estão lá, para serem transformadas em coisa deliciosa.
Temos, entretanto, que ao invés de sopa de tartaruga, na maioria das
vezes o que temos ao final é angu queimado e frango encruado.
Enquanto a gente vai mastigando aquela coisa horrorosa, preparada
depois de muito sofrimento, os especialistas com um sorriso amarelo, nos
informam: Foi feito em panelas de melhor qualidade, importadas... (IBDEM,
p.120)
Critica os sistemas de avaliação de qualidade
afirmando que o "angu queimado e o frango encruado" produzido com a
mais moderna tecnologia e tendo sido testado pelos mais rigorosos testes de
controle de qualidade, demonstram que aos técnicos da educação falta sapiência.
O autor considera que os diplomas, especializações, títulos no exterior não são
garantia de sapiência.
A técnica e a ciência nos oferecem fogões,
panelas, ingredientes e condimentos de sobra. O problema é que ninguém se
lembra mais da receita.
Sapiência é isso: o conhecimento do bom sabor que traz felicidade ao
corpo. É sábio, no sentido etimológico, é provador, degustador, aquele que
havendo se diplomado na cozinha de BABETE, põe a comida na boca e diz:
'delicioso! Está bom para ser servido!' (...)
Assim são nossas escolas, que ensinam tudo sobre o fogo, panelas,
ingredientes, condimentos, reações, transformações, mensurações – mas em nenhum
lugar ensinam a arte suprema sem a qual não se faz comida boa: a arte de
degustar. Nas escolas se fazem cozinheiros castrados de língua.
(IBDEM, p.121)
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