segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O Programa é a Vida!



Acontece que a partir do estudo da caravela outros estudos podem ser feitos nas mais variadas áreas do saber. Pode servir para o estudo da Física, da História, da Matemática, do ensino de língua... Enfim, para as mais diversas áreas e de forma concreta. Os alunos aprendem em nossas escolas a resolver problemas no papel e não na vida. Esse é o destino de toda ciência que não é aprendida a partir da experiência, o esquecimento. Já a ciência que se aprende a partir da vida jamais é esquecida. Para a Escola da Ponte, a vida é o único programa que merece ser seguido. Lá as coisas mais importantes não são ensinadas por meio de aulas preparadas com o apoio de programas. Elas são ensinadas inconscientemente através da criação de um espaço lúdico em que se ensina sem que se fale sobre educação.
Nas escolas "linha de montagem", tudo é separado:  as salas, as séries, os alunos, os conteúdos e as classes sociais. A vida é apresentada como cheia de espaços estanques. As turmas sofrem uma classificação e hierarquização que tem como consequência prática a competição. Os saberes são ministrados em tempos definidos um após o outro: o que se ensina é que os saberes são compartimentos estanques. A escola "linha de montagem", apoiada na ciência, frequentemente produz conclusões equivocadas. Alves considera que Jean Piaget contribuiu para esta prática.

Piaget, analisando o desenvolvimento do aparato cognitivo das crianças, percebeu que ela passa por fases. Da mesma forma como uma planta passa por fases. Não se pode esperar que uma planta dê frutos quando ela ainda não está madura para isso. Essa constatação que é científica, produziu uma conclusão pedagógica estranha: se as capacidades de aprender das crianças passam por fases, então as crianças devem ser agrupadas segundo a fase em que se encontram. Assim o ambiente de aprendizagem de uma criança de 5 anos deve ser distinto e separado do ambiente de aprendizagem de uma criança de 9 anos. As crianças aprendem separadas em pequenos currais... (Correio Popular, Set. 2002)

Em sua crítica a Piaget, considera que este, ao pensar sobre a aprendizagem, levou muito a sério a organização do ambiente e não é bem assim que acontece na vida. Plantas, nas mais diversas fases de crescimento, convivem no mesmo espaço. Árvores imensas estão do lado de sementes recém-brotadas, bem como arbustos florescem ao lado de plantas que já perderam as folhas. E é exatamente nessa diversidade que se encontra a beleza do jardim. Jardim não é canteiro de mudas.
A parte mais rica de experiência humana é a convivência na diversidade: crianças nas mais diversas fases do desenvolvimento cognitivo habitando um mesmo espaço, ajudando-se umas às outras.
Com a metáfora do jardim, o filósofo apresenta posições diferentes de encarar a escola e a educação por ela oferecida.

Escola canteiro de mudas ou Escola jardim. Jardim... inviável? É a falta de compreensão dessa dimensão humana que cria os mecanismos de segregação: as escolas se transformam em canteiros de mudas, todas iguais, separadas por fase de crescimento. E se no meio das mudas iguais aparecer uma planta diferente, o jardineiro a arranca e joga no lixo... Não seria bonito e verdadeiro se as escolas, ao invés de parecerem linhas de montagem, se parecessem com jardins? (ALVES, Correio Popular, 25/09/2002)

A Escola da Ponte o encantou exatamente por ter essa filosofia. Um único espaço, partilhado por todos sem a separação por turmas, sem campainhas tocando para anunciar o fim de uma disciplina e o início de outra. A lição que essa escola nos aponta é que todos partilhamos de um mesmo mundo. Pequenos e grandes são todos companheiros de aventura. Não há competição. Todos se ajudam. A cooperação é fundamental nesse espaço. Os saberes são vinculados ao ritmo da vida e não ao de programas e currículos fechados. Trata-se de uma escola que ouve as crianças de forma sincera, absorvendo o que elas sentem e pensam. São as crianças que estabelecem as regras de convivência. Determinações como a necessidade de silêncio, o trabalho não perturbado e o ouvir música enquanto trabalham foram propostas das mesmas. São elas que estabelecem os mecanismos para lidar com aqueles que se recusam a obedecer às regras. Isso faz com que o espaço da escola se pareça com o espaço do jogo pois este, para ser divertido e fazer sentido, tem de ter regras. Nessa escola as crianças aprendem que a vida social, na prática, depende de que cada um abra mão de sua vontade própria quando esta entra em conflito com os limites convencionas pela vontade do coletivo. Assim, as crianças na Escola da Ponte aprendem a convivência democrática, sem que ela seja uma disciplina do currículo.

domingo, 19 de outubro de 2014

Rubem Alves e a Escola da Ponte



Essa escola trazia a concentração, a alegria e a inteligência de mãos dadas.
Os discípulos viam o seu próprio rosto no artefato que produziam e não o rosto de outro. Tratava-se de uma escola não alienante. Alves encontrou na Escola da Ponte essa escola retrógrada, artesanal...
A Escola da Ponte, a escola com que sempre sonhou sem imaginar que pudesse existir.
Uma escola que funciona dentro dos parâmetros ditos normais de nossa sociedade, a "escola de linha de montagem", tem um perfil de funcionamento definido. Nessa escola encontramos salas de aula, em cada sala um professor, o professor ensinado, explicando a matéria prevista nos programas oficiais, crianças aprendendo.
Há intervalos regulares, soa uma campainha, sabe-se então que vai haver uma mudança; muda-se de matéria, frequentemente muda-se de professor, pois há professores de Matemática, de Geografia, de Ciências etc, cada um ensinando a disciplina de sua especialidade.
Na Escola da Ponte a filosofia é completamente diferente. Lá não existem salas de aula no sentido tradicional. Não há classes separadas por séries como 1o ano, 2o ano, 3o ano... Também não existem aulas em que o professor ensine a matéria. O aprendizado se dá através da formação de pequenos grupos que tenham interesse comum por um determinado assunto. Os alunos reúnem-se com a professora e ela estabelece dialogicamente um programa de trabalho de 15 dias. Durante este período ela orientará o que os alunos devem pesquisar e onde pesquisar. São usados de forma bastante frequente os recursos da INTERNET. No fim dos 15 dias estabelecidos o grupo de reúne e avalia juntamente com a professora o que foi realmente aprendido. Se na avaliação do grupo o objetivo tiver sido alcançado, o grupo se dissolve e forma-se outro para estudar outro assunto.
As salas são grandes e sem divisões. Existem várias mesinhas baixas, próprias para o uso das crianças. Lá eles trabalham nos seus projetos com total autonomia. Movem-se pela sala com total liberdade. Os professores ficam em algumas mesas e se movem quando necessário.
Outro momento marcante na Escola da Ponte vivido por Alves se deu quando observou que

[...] à esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes, afixadas na parede. A menina explicou: 'Aprendemos a ler, lendo frases inteiras.' Lembrei-me que foi assim que eu aprendi a ler. Minha primeira cartilha se chamava O Livro de Lili. Na primeira página havia o desenho de uma menininha com o seguinte texto, que nunca esqueci: 'olhem para mim! / Eu me chamo Lili. /Eu comi muito doce. / Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce!' Imaginei que a diferença, talvez, fosse que o texto O Livro de Lili tinha sido escrito por uma pessoa no seu escritório. E que as frases que se encontravam escritas na parede da Escola da Ponte eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida que cada um vive. (IBDEM, p.42)

Na Escola da Ponte as crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão viva de solidariedade. Muito mais importante do que o aprender saberes é aprender valores. A ética permeia todas as relações nesse ambiente.
Existem nas paredes, cartazes em que as crianças pedem ajuda sobre determinada dificuldade ou se oferecem para ajudar em determinados assuntos.
Os portadores de necessidade especial, como alunos com Síndrome de Down, trabalham junto com as outras crianças. Eles são tratados com igualdade. A maior lição que aprendem é que todos têm um lugar importante na vida.
Rubem Alves narra outro momento de impacto na Escola da Ponte:

Andando vi um texto intitulado Direitos da Criança Quanto à Leitura. O primeiro direito rezava: 'Toda criança tem o direito de não ler livros que não goste' (...)
Li depois, texto dos Direitos e Deveres elaborados pelas próprias crianças. Dentre todos, o que mais me impressionou foi o que dizia assim: temos o direito de ouvir música na sala de trabalho para trabalharmos em silêncio. (IBDEM, p.44)

Nessa escola há os computadores do "acho bom" e do "acho mau". Quando os alunos querem elogiar algo ou alguma atividade, escrevem no computador do "acho bom". Quando ao contrário, querem reclamar ou fazer alguma queixa, escrevem no computador do "acho mau".
Quando existem problemas de disciplina as crianças recorrem a um tribunal. Aquele que desrespeita as regras de convivência traçada por elas mesmas, tem de comparecer perante esse Tribunal.
A primeira pena que se recebe é pensar durante um período de três dias sobre seus atos. Retorna para dizer o que pensou.
São feitas assembleias semanais para tratar dos problemas da escola e sugerir soluções. Na assembleia nenhum aluno interrompe o outro. Isso também é uma regra que as próprias crianças estabeleceram. Consta na lista de Direitos e Deveres. Quem deseja falar deve levantar a mão e aguardar a indicação do presidente da assembleia que também é uma criança.
Muitos podem se perguntar se essa escola pode funcionar bem sem programa, currículo e disciplinas. O relato abaixo fala por si.

Quando visitei a Escola da Ponte, o tema era 'A Descoberta do Brasil' e tudo mais que a cercava. As crianças estavam fascinadas com o feito dos navegadores, seus antepassados, nessa aventura mais ousada que a viagem dos astronautas à Lua. Imagine agora que algumas das crianças tenham ficado curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os descobrimentos possíveis: as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las. Um diretor de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz – 'O tema caravelas não consta de nenhum programa nem aqui, nem em nenhum outro lugar do mundo.' E concluiria: 'Não constando em nenhum programa, não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não vai cair no vestibular.' (ALVES, 2001, p.59)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Rubem Alves e a escola que sonhou



A segunda crônica que poderíamos citar é "Quero uma escola retrógrada". Nesta, critica as nossas escolas afirmando que seguem o modelo das linhas de montagem das fábricas. Escolas são fábricas que se organizam para produzir unidades biopsicológicas móveis, portadoras de conhecimentos e habilidades. Esses conhecimentos e habilidades são definidos exteriormente por agências governamentais. Os modelos estabelecidos por tais agências são obrigatórios e tem a lei que lhe dá respaldo. Os alunos que ao final do processo não estejam de acordo com tais modelos são descartados. É a homogeneidade das "peças" que atesta a qualidade do processo. Quem não passa no teste de qualidade não recebe o diploma, certificado de excelência ISO 1200.

As linhas de montagem denominadas escolas organizam-se segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam 'salas de aulas'. As coordenadas temporais se denominam 'anos' ou 'séries'. Dentro dessas unidades espaço-tempo, os professores realizam o processo técnico-científico de acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidades que juntos irão compor o objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos – à semelhança do que acontece com os 'objetos originais' na linha de montagem da fábrica – o objeto original que entrou na linha de montagem chamada escola (naquele momento ele chamava 'criança') perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os saberes – habilidades que a ele foram acrescentados durante o processo. A criança está, finalmente, formada, isto é, transformada num produto igual a milhares de outros ISO 1200, está formada, isto é, de acordo com a fôrma. É mercadoria espiritual, que pode entrar no mercado de trabalho. (ALVES, 2001, p.36)

A visão de escola foge às respostas estereotipadas de vários educadores. A falta de verbas, a condição de indigência dos professores, o mau aproveitamento dos alunos, também são preocupações do autor, porém, acrescenta a isso tudo uma mudança de filosofia da escola. Mesmo que o Estado investisse mais, pagasse mais aos professores e desse todas as condições materiais para o ambiente escolar, ainda faltaria o essencial: uma mudança de mentalidade. Afinal, é um equívoco pensar que com panelas novas e sofisticadas o mau cozinheiro fará comida boa.
A obra pedagógica de Alves é muito prolífera. Nada escapou a seu olhar agudo. Porém uma crítica constante a seu trabalho é a de que ele não tem uma proposta concreta de escola. Fica apenas nas metáforas, analogias e crônicas bem escritas, mas sem aplicação prática. Nunca se preocupou em criar uma escola que aplicasse sua própria filosofia. No ano de 2001, porém, quando visitou uma escola portuguesa chamada Escola da Ponte, sentiu-se tão atraído pela experiência daquele local que escreveu o livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir.
Esta escola foi assumida pelo autor como se fosse uma expressão concreta de suas ideias.
Em seu texto "Gaiolas ou asas?", presente no seu livro Por uma educação romântica, afirma que "Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado, só pode ser encorajado." (ALVES, 2002, p.30)
A Escola da Ponte é um espaço que proporciona asas aos alunos. Ela funcionou como um Koan na sua vida e provocou uma experiência de Iluminação[1].
Por ser um apaixonado pela educação, nunca se conformou com os absurdos que ocorrem nas práticas escolares: o sofrimento das crianças, desperdício de tempo, os esforços desnecessários e inúteis, absurdos danosos à vida e a inteligência subestimada das crianças e jovens.


Ao visitar a Escola da Ponte, sofreu um forte impacto, pois ali vislumbrou algo com que sempre sonhara.

O KOAN aconteceu a partir do espantoso momento inicial. Eu, professor estrangeiro, visitante, fui visitar a escola esperando que seu diretor me desse as devidas explicações. Mas nada disso aconteceu. Depois de trocar comigo aquelas palavras iniciais de cordialidade, ele simplesmente chamou uma menina de uns nove anos que estava passando e lhe disse com total tranquilidade: 'Tu podes mostrar e explicar nossa escola ao nosso visitante?'
Ditas estas palavras, ele me abandonou sem pedir desculpas e a menininha assumiu a tarefa com uma inteligência e um desembaraço que me deixaram perplexo. Compreendi então que eu me encontrava diante de uma escola que eu nunca imaginara. (ALVES, 2001, p.32)

A partir desse primeiro momento, sofreu uma série de surpresas agradáveis que o motivaram a assumir tal escola como a sua própria proposta educacional.
Embora não saiba se experiências como a da Escola da Ponte podem ser reduplicadas, utilizou o relato de suas experiências nesta escola para provocar Satori ou Iluminação em seus leitores. Que os leitores desaprendam a quantidade enorme de teorias despejadas neles. Afinal, os burocratas da educação sempre imaginam que os professores tornam-se mais capacitados se mais saberes lhes forem acrescentados. Jamais lhes passa pela cabeça  que a questão não é somar saberes, mas subtrair saberes como ensina o Zen-Budismo. Só assim os leitores verão o que nunca viram. Assim se inicia a sapiência.
Em crônicas como Koan, Quero uma escola retrógrada e Escola da Ponte (1), (2), (3), (4) e (5); relata como foi a experiência de SATORI que teve na Escola da Ponte: "Por isso sou grato, fiquei iluminado..." (ALVES, 2001, p.32)
Em Quero uma escola retrógrada, cria, com o próprio título, uma situação de estranhamento no leitor. Ao afirmar a disposição de estabelecer uma escola retrógrada, choca a maioria dos educadores. A palavra "retrógrada" tem uma conotação totalmente negativa em nossa sociedade. No entanto, é exatamente esse o seu objetivo: mostrar que muitas vezes o que chamamos de retrógrado é uma resistência legítima a ideia de evolução e progresso tão propalados na sociedade moderna. Mas será que essa sociedade e a escola que ela oferece progrediram realmente? Essa é a grande provocação do texto.
Contra uma "escola de linha de montagem" propõe uma "escola retrógrada". O que chama de retrógrado é uma escola inspirada no modelo da oficina do artesão medieval. Uma escola artesanal. Precisamos

[...] abandonar a linha de montagem de fábrica como modelo para a escola e andando mais para trás tomar o modelo medieval da oficina do artesão como modelo para a escola. O mestre-artesão não determinava como deveria ser o objeto a ser produzido pelo aprendiz. Os aprendizes, todos juntos iam fazendo cada um a sua coisa. Eles não tinham de reproduzir um objeto ideal escolhido pelo mestre. O mestre estava a serviço dos aprendizes e não os aprendizes a serviço do mestre. O mestre ficava andando pela oficina, dando uma sugestão aqui, outra ali, mostrando o que não ficava bem, mostrando o que fazer para ficar melhor (modelo maravilhoso de 'avaliação'). Trabalho duro, fazer e refazer. Mas os aprendizes trabalham sem que seja preciso que alguém lhes diga que devem trabalhar. (IBDEM, p.38)





[1]    Conferir definição na nota 1.