sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Rubem Alves e a escola que sonhou



A segunda crônica que poderíamos citar é "Quero uma escola retrógrada". Nesta, critica as nossas escolas afirmando que seguem o modelo das linhas de montagem das fábricas. Escolas são fábricas que se organizam para produzir unidades biopsicológicas móveis, portadoras de conhecimentos e habilidades. Esses conhecimentos e habilidades são definidos exteriormente por agências governamentais. Os modelos estabelecidos por tais agências são obrigatórios e tem a lei que lhe dá respaldo. Os alunos que ao final do processo não estejam de acordo com tais modelos são descartados. É a homogeneidade das "peças" que atesta a qualidade do processo. Quem não passa no teste de qualidade não recebe o diploma, certificado de excelência ISO 1200.

As linhas de montagem denominadas escolas organizam-se segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam 'salas de aulas'. As coordenadas temporais se denominam 'anos' ou 'séries'. Dentro dessas unidades espaço-tempo, os professores realizam o processo técnico-científico de acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidades que juntos irão compor o objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos – à semelhança do que acontece com os 'objetos originais' na linha de montagem da fábrica – o objeto original que entrou na linha de montagem chamada escola (naquele momento ele chamava 'criança') perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os saberes – habilidades que a ele foram acrescentados durante o processo. A criança está, finalmente, formada, isto é, transformada num produto igual a milhares de outros ISO 1200, está formada, isto é, de acordo com a fôrma. É mercadoria espiritual, que pode entrar no mercado de trabalho. (ALVES, 2001, p.36)

A visão de escola foge às respostas estereotipadas de vários educadores. A falta de verbas, a condição de indigência dos professores, o mau aproveitamento dos alunos, também são preocupações do autor, porém, acrescenta a isso tudo uma mudança de filosofia da escola. Mesmo que o Estado investisse mais, pagasse mais aos professores e desse todas as condições materiais para o ambiente escolar, ainda faltaria o essencial: uma mudança de mentalidade. Afinal, é um equívoco pensar que com panelas novas e sofisticadas o mau cozinheiro fará comida boa.
A obra pedagógica de Alves é muito prolífera. Nada escapou a seu olhar agudo. Porém uma crítica constante a seu trabalho é a de que ele não tem uma proposta concreta de escola. Fica apenas nas metáforas, analogias e crônicas bem escritas, mas sem aplicação prática. Nunca se preocupou em criar uma escola que aplicasse sua própria filosofia. No ano de 2001, porém, quando visitou uma escola portuguesa chamada Escola da Ponte, sentiu-se tão atraído pela experiência daquele local que escreveu o livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir.
Esta escola foi assumida pelo autor como se fosse uma expressão concreta de suas ideias.
Em seu texto "Gaiolas ou asas?", presente no seu livro Por uma educação romântica, afirma que "Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado, só pode ser encorajado." (ALVES, 2002, p.30)
A Escola da Ponte é um espaço que proporciona asas aos alunos. Ela funcionou como um Koan na sua vida e provocou uma experiência de Iluminação[1].
Por ser um apaixonado pela educação, nunca se conformou com os absurdos que ocorrem nas práticas escolares: o sofrimento das crianças, desperdício de tempo, os esforços desnecessários e inúteis, absurdos danosos à vida e a inteligência subestimada das crianças e jovens.


Ao visitar a Escola da Ponte, sofreu um forte impacto, pois ali vislumbrou algo com que sempre sonhara.

O KOAN aconteceu a partir do espantoso momento inicial. Eu, professor estrangeiro, visitante, fui visitar a escola esperando que seu diretor me desse as devidas explicações. Mas nada disso aconteceu. Depois de trocar comigo aquelas palavras iniciais de cordialidade, ele simplesmente chamou uma menina de uns nove anos que estava passando e lhe disse com total tranquilidade: 'Tu podes mostrar e explicar nossa escola ao nosso visitante?'
Ditas estas palavras, ele me abandonou sem pedir desculpas e a menininha assumiu a tarefa com uma inteligência e um desembaraço que me deixaram perplexo. Compreendi então que eu me encontrava diante de uma escola que eu nunca imaginara. (ALVES, 2001, p.32)

A partir desse primeiro momento, sofreu uma série de surpresas agradáveis que o motivaram a assumir tal escola como a sua própria proposta educacional.
Embora não saiba se experiências como a da Escola da Ponte podem ser reduplicadas, utilizou o relato de suas experiências nesta escola para provocar Satori ou Iluminação em seus leitores. Que os leitores desaprendam a quantidade enorme de teorias despejadas neles. Afinal, os burocratas da educação sempre imaginam que os professores tornam-se mais capacitados se mais saberes lhes forem acrescentados. Jamais lhes passa pela cabeça  que a questão não é somar saberes, mas subtrair saberes como ensina o Zen-Budismo. Só assim os leitores verão o que nunca viram. Assim se inicia a sapiência.
Em crônicas como Koan, Quero uma escola retrógrada e Escola da Ponte (1), (2), (3), (4) e (5); relata como foi a experiência de SATORI que teve na Escola da Ponte: "Por isso sou grato, fiquei iluminado..." (ALVES, 2001, p.32)
Em Quero uma escola retrógrada, cria, com o próprio título, uma situação de estranhamento no leitor. Ao afirmar a disposição de estabelecer uma escola retrógrada, choca a maioria dos educadores. A palavra "retrógrada" tem uma conotação totalmente negativa em nossa sociedade. No entanto, é exatamente esse o seu objetivo: mostrar que muitas vezes o que chamamos de retrógrado é uma resistência legítima a ideia de evolução e progresso tão propalados na sociedade moderna. Mas será que essa sociedade e a escola que ela oferece progrediram realmente? Essa é a grande provocação do texto.
Contra uma "escola de linha de montagem" propõe uma "escola retrógrada". O que chama de retrógrado é uma escola inspirada no modelo da oficina do artesão medieval. Uma escola artesanal. Precisamos

[...] abandonar a linha de montagem de fábrica como modelo para a escola e andando mais para trás tomar o modelo medieval da oficina do artesão como modelo para a escola. O mestre-artesão não determinava como deveria ser o objeto a ser produzido pelo aprendiz. Os aprendizes, todos juntos iam fazendo cada um a sua coisa. Eles não tinham de reproduzir um objeto ideal escolhido pelo mestre. O mestre estava a serviço dos aprendizes e não os aprendizes a serviço do mestre. O mestre ficava andando pela oficina, dando uma sugestão aqui, outra ali, mostrando o que não ficava bem, mostrando o que fazer para ficar melhor (modelo maravilhoso de 'avaliação'). Trabalho duro, fazer e refazer. Mas os aprendizes trabalham sem que seja preciso que alguém lhes diga que devem trabalhar. (IBDEM, p.38)





[1]    Conferir definição na nota 1.

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