segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Rubem Alves e a Escola de Pinóquios



Prosseguindo com a analogia, o filósofo afirma que os técnicos tratariam de consertar a máquina, pois ficariam convencidos de que ela precisa de ajustes e peças novas. Mas ao contrário do que pensam os técnicos, afirma que não há nada de errado com a "máquina de ensino". A questão fundamental é que os corpos dos alunos têm seus próprios mecanismos de "controle de qualidade" e, se o aprendizado não acontece, é porque seus corpos "reprovam" a máquina.

Seus corpos vomitam o que a máquina lhes enfia pela goela abaixo. O resultado do "EXAMÃO" seria a prova disto.
Nietzsche, no seu ensaio sobre TALES, refere-se às coisas 'dignas de serem conhecidas'.
A inteligência funciona como o aparelho digestivo: ela 'testa' os sabores, e somente aqueles que são dignos de serem aprendidos são comidos, digeridos e incorporados. Os outros são vomitados. A recusa à aprendizagem é o vômito daquilo que o sistema educacional quer impor mas que não faz sentido para os alunos. (IBIDEM, p.171)

Considera que o problema de nossa educação não é uma falha de didática, psicologia, recursos tecnológicos ou mesmo falta de recursos financeiros. Quando o sistema como um todo está equivocado, as tentativas de consertá-lo só agravam o problema.
O corpo humano tem uma sabedoria própria. Ele tem seus próprios critérios de avaliação de qualidade. Ele só aprende efetivamente dois tipos de conteúdos. Em primeiro lugar, os conteúdos que dão prazer, aqueles que atendem os desejos do aluno. Em segundo, o meio para se chegar ao objeto de prazer.
Infelizmente, os conteúdos curriculares processados pela máquina (nosso sistema educacional) não são nem objeto de prazer e tampouco meios para chegar à coisa alguma, a não ser passar no Vestibular. A realidade é que os estudantes não entendem a razão de ter de aprender o que estão sendo forçados a aprender. Os educadores não devem mudar as "panelas" e sim o "menu educacional".
A crítica ao modelo hegemônico da escola em nossa sociedade pode também ser ilustrada por duas crônicas em que o autor mais uma vez usa o recurso metafórico para veicular suas ideias. A primeira é Oiuqonip (Pinóquio às Avessas). Essa crônica se vale do conto infantil de Carlo Colodi, Pinóquio, e propõe contá-lo às avessas. Conta-nos então a história de um menino comum de carne e osso, igual a todos os outros, que tinha prazer com as coisas simples da vida.

Ria nos seus mundos de faz-de-conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva – todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer, e não fazem por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo. (ALVES, 1995, p.76)

Mas o autor nos conta que a alegria duraria pouco, pois seus pais lhe colocaram na escola. Afinal todos os meninos precisam ir a escola para se tornarem "alguém na vida". Em cada criança brincante dorme um adulto produtivo. É preciso que o adulto produtivo devore a criança inútil.
O menino aprendeu todos os conteúdos que a escola lhe oferecera.
Sabia que aquilo deveria servir para alguma coisa. Só que ele não entendia. Suas notas vermelhas no boletim demonstravam que ele tinha outros interesses.

O menino cresceu. E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se encontrar com dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, que se puseram a contar estória de um mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar.
Eles disseram de heróis em aventais brancos, cavalgando microscópios e telescópios, brandindo máquinas fantásticas e aparelhos misteriosos, em meio a líquidos mágicos que fazem viver e morrer, encastelados em templos onde as coisas visíveis ficavam invisíveis e as coisas invisíveis ficavam visíveis, e lhe disseram de prodígios de verdade, e lhe perguntaram se ele não desejava se transformar num mago, num artista...
A recompensa? O poder, o conhecimento de segredos que ninguém conhece, a glória, ser olhado por todos como um ser diferente, sublime, superior. Se os seus prodígios fossem maiores que os de todos, ele poderia aparecer no palco supremo da ciência, em países distantes onde os mortais se revestem de imortalidade. (IBIDEM, p.78)

O rapaz acaba se tornando um estudante de ciências, mas acaba também se tornando alguém totalmente diferente daquele sonhador de antes.
Muda seu olhar, que deixa de ver muitas coisas de antes. Aprendeu a concentração e a disciplina. Desaprendeu a dança e as brincadeiras. Abandonou a fantasia, os mitos e os contos de fadas. Passou a dominar números, estatísticas, fórmulas e experimentos. Também aprendeu que o cientista é neutro, que não se emociona com considerações de valor ou prazer. Acabou por se (trans)formar num eficiente cientista.

Já não era o menino de outrora, carne e osso. Crescera. Estava diferente. Os aplausos de madeira enchiam a sala. Era a glória. E foi então que o milagre aconteceu. O recinto se encheu de suave luminosidade e a Mosca Azul, que até então só habitava os seus sonhos, veio de longe e roçou seu rosto com suas asas. E a grande transformação aconteceu. Era um boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de bonecos, iguais, de pé não paravam de tamanquear seus aplausos ao novo irmão, enquanto gritavam seu nome: Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio... (IBIDEM, p.79)

Em vários textos ao longo de sua obra, toma esta figura como fundamental para mostrar o que a escola faz com os alunos, transformando-os de seres de carne e osso em "bonecos de pau".

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