domingo, 19 de outubro de 2014

Rubem Alves e a Escola da Ponte



Essa escola trazia a concentração, a alegria e a inteligência de mãos dadas.
Os discípulos viam o seu próprio rosto no artefato que produziam e não o rosto de outro. Tratava-se de uma escola não alienante. Alves encontrou na Escola da Ponte essa escola retrógrada, artesanal...
A Escola da Ponte, a escola com que sempre sonhou sem imaginar que pudesse existir.
Uma escola que funciona dentro dos parâmetros ditos normais de nossa sociedade, a "escola de linha de montagem", tem um perfil de funcionamento definido. Nessa escola encontramos salas de aula, em cada sala um professor, o professor ensinado, explicando a matéria prevista nos programas oficiais, crianças aprendendo.
Há intervalos regulares, soa uma campainha, sabe-se então que vai haver uma mudança; muda-se de matéria, frequentemente muda-se de professor, pois há professores de Matemática, de Geografia, de Ciências etc, cada um ensinando a disciplina de sua especialidade.
Na Escola da Ponte a filosofia é completamente diferente. Lá não existem salas de aula no sentido tradicional. Não há classes separadas por séries como 1o ano, 2o ano, 3o ano... Também não existem aulas em que o professor ensine a matéria. O aprendizado se dá através da formação de pequenos grupos que tenham interesse comum por um determinado assunto. Os alunos reúnem-se com a professora e ela estabelece dialogicamente um programa de trabalho de 15 dias. Durante este período ela orientará o que os alunos devem pesquisar e onde pesquisar. São usados de forma bastante frequente os recursos da INTERNET. No fim dos 15 dias estabelecidos o grupo de reúne e avalia juntamente com a professora o que foi realmente aprendido. Se na avaliação do grupo o objetivo tiver sido alcançado, o grupo se dissolve e forma-se outro para estudar outro assunto.
As salas são grandes e sem divisões. Existem várias mesinhas baixas, próprias para o uso das crianças. Lá eles trabalham nos seus projetos com total autonomia. Movem-se pela sala com total liberdade. Os professores ficam em algumas mesas e se movem quando necessário.
Outro momento marcante na Escola da Ponte vivido por Alves se deu quando observou que

[...] à esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes, afixadas na parede. A menina explicou: 'Aprendemos a ler, lendo frases inteiras.' Lembrei-me que foi assim que eu aprendi a ler. Minha primeira cartilha se chamava O Livro de Lili. Na primeira página havia o desenho de uma menininha com o seguinte texto, que nunca esqueci: 'olhem para mim! / Eu me chamo Lili. /Eu comi muito doce. / Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce!' Imaginei que a diferença, talvez, fosse que o texto O Livro de Lili tinha sido escrito por uma pessoa no seu escritório. E que as frases que se encontravam escritas na parede da Escola da Ponte eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida que cada um vive. (IBDEM, p.42)

Na Escola da Ponte as crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão viva de solidariedade. Muito mais importante do que o aprender saberes é aprender valores. A ética permeia todas as relações nesse ambiente.
Existem nas paredes, cartazes em que as crianças pedem ajuda sobre determinada dificuldade ou se oferecem para ajudar em determinados assuntos.
Os portadores de necessidade especial, como alunos com Síndrome de Down, trabalham junto com as outras crianças. Eles são tratados com igualdade. A maior lição que aprendem é que todos têm um lugar importante na vida.
Rubem Alves narra outro momento de impacto na Escola da Ponte:

Andando vi um texto intitulado Direitos da Criança Quanto à Leitura. O primeiro direito rezava: 'Toda criança tem o direito de não ler livros que não goste' (...)
Li depois, texto dos Direitos e Deveres elaborados pelas próprias crianças. Dentre todos, o que mais me impressionou foi o que dizia assim: temos o direito de ouvir música na sala de trabalho para trabalharmos em silêncio. (IBDEM, p.44)

Nessa escola há os computadores do "acho bom" e do "acho mau". Quando os alunos querem elogiar algo ou alguma atividade, escrevem no computador do "acho bom". Quando ao contrário, querem reclamar ou fazer alguma queixa, escrevem no computador do "acho mau".
Quando existem problemas de disciplina as crianças recorrem a um tribunal. Aquele que desrespeita as regras de convivência traçada por elas mesmas, tem de comparecer perante esse Tribunal.
A primeira pena que se recebe é pensar durante um período de três dias sobre seus atos. Retorna para dizer o que pensou.
São feitas assembleias semanais para tratar dos problemas da escola e sugerir soluções. Na assembleia nenhum aluno interrompe o outro. Isso também é uma regra que as próprias crianças estabeleceram. Consta na lista de Direitos e Deveres. Quem deseja falar deve levantar a mão e aguardar a indicação do presidente da assembleia que também é uma criança.
Muitos podem se perguntar se essa escola pode funcionar bem sem programa, currículo e disciplinas. O relato abaixo fala por si.

Quando visitei a Escola da Ponte, o tema era 'A Descoberta do Brasil' e tudo mais que a cercava. As crianças estavam fascinadas com o feito dos navegadores, seus antepassados, nessa aventura mais ousada que a viagem dos astronautas à Lua. Imagine agora que algumas das crianças tenham ficado curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os descobrimentos possíveis: as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las. Um diretor de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz – 'O tema caravelas não consta de nenhum programa nem aqui, nem em nenhum outro lugar do mundo.' E concluiria: 'Não constando em nenhum programa, não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não vai cair no vestibular.' (ALVES, 2001, p.59)

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