É exatamente por isso que Rubem Alves critica
tanto os exames oficiais (inclusive os Vestibulares) feitos para avaliar a
qualidade do ensino. Esses exames produzem resultados mentirosos por serem
realizados no momento em que "a água ainda não escorreu". Eles só
seriam verdadeiros se fossem realizados muito tempo depois do esquecimento
haver feito o seu trabalho.
O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido...
Vestibulares, tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência
à inteligência...
O que sobra no escorredor de macarrão depois de transcorridos dois
meses?
O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de
aprender?
Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido
que o professor especialista em Português se saia bem em Matemática, Física,
Química e Biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários
passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então porque essa violência sobre os
estudantes? (IBIDEM)
Com relação ao Vestibular, o autor escreveu
diversos textos em seu livro Estórias de
quem Gosta de Ensinar.
Uma história que mostra bem a técnica de provocar
a Iluminação em seus leitores é O país dos dedos gordos.
Nessa história o autor conta sobre "um país
distante e céu cor de anil, que tinha tempo e gosto para cantar, brincar, fazer
versos e experimentar com aquelas artes e aquelas ciências que faziam alegre o
seu coração. Felizes também eram o rei e a rainha, amigos de todos e que
esperavam, para completar sua felicidade, o nascimento de uma criança”. (ALVES,
1986, p.70)
A história prossegue com o nascimento da menina
que foi marcada por um feitiço lançado por uma bruxa que vivia numa floresta
negra. A menina ficou com o dedo "seu vizinho" grosso e nada havia
que pudesse curá-la. O rei desesperado, a fim de amenizar o sofrimento de sua
filha, decidiu que anualmente seria realizado um baile para o qual todos os
jovens do reino seriam convidados. Infelizmente nem todos poderiam ser
admitidos, porque só havia lugar para mil pares no salão de festas.
Muitos seriam chamados, mas poucos os escolhidos.
Os que entrassem seriam rigidamente recompensados
com empregos públicos vitalícios. Além disso, um dentre eles seria o escolhido
da princesa. O critério para a admissão era ter o dedo "seu vizinho"
grosso. Aqueles que, dentre todos, tivessem os dedos mais grossos entrariam no
baile. Só havia mil vagas. Para que houvesse justiça, seriam instalados
orifícios eletrônicos no vestíbulo do palácio onde os moços enfiariam seus
dedos e o sistema os classificaria.
Todos compreenderam que o futuro passava pelos exames vestibulares e
que só havia uma única coisa que importava: a grossura do dedo 'seu vizinho' da
mão esquerda. Cessou a antiga alegria inconsequente e descontraída. Os pais
deixaram de prestar atenção nos risos para prestar atenção no dedo. E se
gabavam: menino de futuro promissor, veja só seu dedo tão jovem e tão grosso...
As escolas passaram por revoluções.
Os estabelecimentos antiquados, preocupados com sorrisos, viram-se
repentinamente sem alunos.
'Alegria não engrossa o dedo', diziam os pais categóricos, ao pagar
sua última prestação.
E os que progrediam eram aqueles que desde cedo introduziam as
crianças na filosofia do dedo grosso. Música, literatura, brinquedos, as artes
e as ciências que davam prazer foram todas aposentadas. O que importava era
passar no vestibular e, no vestibular, só contava a grossura do dedo. (Alves,1986,p.70)
Rubem Alves dá continuidade à história com seu
sarcasmo habitual encerrando a ideia de que a partir dessa situação criou-se
uma nova filosofia da educação. Surgiram os cursinhos preparatórios e as
escolas voltadas para o objetivo pragmático de aprovação no vestibular. Os
preços se tornaram exorbitantes. Os pais trabalhavam horas extras e se
sacrificavam em favor do futuro dos filhos.
Os que ficavam de fora se punham a olhar para seus dedos grossos.
Aquele era o resultado dos anos de sacrifício e privações. Será que adiantou? E
pensavam nas coisas perdidas, nunca mais. Dedo grosso, inútil, gordo de
abstenções e sacrifícios.
As coisas que davam prazer haviam sido abandonadas e, agora, estavam
sem o baile e sem o prazer. A suspeita era de que haviam sido vítimas de uma
grande burla... A cada ano que passava, aumentava o número de jovens tristes.
Nunca entrariam no baile. E o pior: estavam aleijados. O mundo havia se
transformado num gigantesco dedo grosso. Era como se um pedaço de vida lhes
tivesse sido roubado, irremediavelmente. E passado não se recupera. Por todo o
país, a nuvem da tristeza. Os técnicos sugeriram que talvez, com técnicas mais
eficientes, a qualidade do ensino poderia ser melhorada. Dedos mais grossos talvez...
O único problema é que o tamanho do salão de bailes continuava o
mesmo. (IBIDEM, p.73)
A história termina com uma mudança radical. O
vestibular acaba sendo abolido. O que passou a vigorar foi a alegria de viver.
Ninguém mais procurou cursinhos engrossa-dedo que acabaram por fechar suas
portas.
Os pais pararam de fiscalizar os dedos dos filhos
e estes passaram a ir para a escola com prazer. Estudavam coisas úteis e belas,
todas relacionadas com a vida. Os poemas, as músicas, os instrumentos voltaram
a ser utilizados. Das ciências e artes eles se dedicavam somente àquelas que
lhes davam prazer.
Essa história contada por Rubem Alves demonstra
um outro recurso utilizado pelo autor: através de um caso, um conto, uma
fábula, o autor procura afetar o seu leitor. Para o filósofo o vestibular
começa com uma mentira, o próprio nome.
Dizem que é um exame vestibular. Vem de vestíbulo, que é o lugar de
entrada. Entrada, claro, para a Universidade. Porta que se abre para a frente.
E aí, enganados pelo nome, não percebemos aquilo que eles fecham para trás.
Apresentam-se como leões-de-chácara, que só lidam com adultos, mas não contam
para ninguém que às escondidas aterrorizam as crianças pequenas. Os
vestibulares visitam as fantasias dos pais, rondam os jardins de infância,
anunciam-se nos anos de primeiro grau e, já no segundo grau, tomam conta da
alma e do corpo dos meninos. Todo mundo já está aleijado. (IBIDEM, p.75)
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