domingo, 29 de junho de 2014

Continuação Pensamento Pedagógico de Rubem Alves



Imaginemos então uma visita a uma aldeia de pescadores. Que currículo poderíamos montar para atender à vida daqueles alunos? Sem dúvida, algo como o estudo das pedras, das conchas, das águas vivas, dos peixes, dos barcos, dos ventos, da meteorologia, das técnicas de pesca etc. Porém, não é isso o que acontece. A escola da região trabalha conteúdos como a análise sintática, algo que não tem nada a ver com a vida deles. Eles não se interessam por esse tema de estudo.
Exatamente por esse motivo, Rubem Alves critica os laboratórios dentro das escolas.

Na verdade eles são uma boa maneira de enganar os pais, que ficam impressionados com os aparelhos, as luzes, etc. Mas contam uma mentira, porque a ciência não se faz dentro de um quartinho; se faz em todas as situações da vida, com cérebro e olho. Aquele monte de instrumentos e frascos só tem a função de melhorar o olho, mais nada! É preciso que os aprendizados estejam ligados às situações vividas, caso contrário tudo é esquecido. (ALVES, Revista Nova Escola, Maio de 2002, p.46)


O objetivo da Escola é ensinar a pensar e não somente dar informações. E para ilustrar esse pensamento o filósofo utiliza outra metáfora bastante frequente em sua obra: as informações são como peças em um jogo de xadrez. Quem só possui as peças não sabe coisa nenhuma. O importante é conhecer o movimento das peças nos espaços vazios. Assim funciona também o pensamento.
Muitas pessoas concentram uma infinidade de informações, mas não sabem pensar. Logo seu saber é inútil.
A questão central é que o corpo, sujeito da educação na Pedagogia alvesiana, só pensa nas coisas que lhe são vitais. Ele pensa para viver. É exatamente por isso que o educador deveria se fazer o tempo todo a pergunta: o que estou ensinando é vital para meus alunos?
Nesse sentido, o ato de educar deve partir do espanto e da curiosidade pelas coisas da vida.

As crianças, por natureza, são curiosas. Elas se espantam diante dos objetos mais simples: uma minhoca, um caracol, um ninho, uma nuvem.
Quando menino, eu me deitava no capim e ficava olhando para as nuvens assombrado, com mil perguntas na minha cabeça. O que são elas? Por que aparecem e, de repente, desaparecem? O que faz com que umas sejam como flocos de algodão e outras como longas tiras? Por que se transformam em chuva? Na minha cabeça estavam as perguntas que são o início do espírito científico. O aprendizado é sempre assim: primeiro a curiosidade, a pergunta. Depois, a busca da resposta. Por isso, aquilo que é aprendido (tirar notas boas nas provas) é rapidamente esquecido. O que restou, em nossa memória, de tudo o que tivemos de estudar e sobre o que fizemos provas e tiramos notas boas? Quase nada. (Revista SINPRO/RS, Março de 2002, p.2)

Seguindo na linha de metáforas e histórias, uma fábula magistral retrata o currículo das escolas. Trata-se de O currículo dos urubus. Nessa fábula, o autor nos conta a história de um rei Leão, que resolveu que nenhum de seus súditos da floresta devia morrer ignorante. Estava convicto de que a educação era o bem maior que poderia ser oferecido em seu reino.

Convocou o urubu, impecavelmente trajado em sua beca doutoral, companheiro de preferências e de churrascos, para assumir a responsabilidade de organizar e redigir a cruzada do saber. Que os bichos precisavam de educação, não há duvidas. O problema primeiro era o de ensinar.
Questão de currículo: estabelecer as coisas sobre as quais os mestres iriam falar e os discípulos iriam aprender. Parece que havia acordo entre os participantes do grupo de trabalho, todos urubus, é claro: os pensamentos dos urubus eram os mais verdadeiros, o andar dos urubus era o mais elegante, as preferências de nariz e de língua dos urubus eram mais adequadas para uma saúde perfeita, a cor dos urubus era a mais tranquilizante, o canto dos urubus era o mais bonito. Em suma: o que era bom para os urubus era bom para o resto dos bichos. (ALVES, 1995-A, p.64)

A história prossegue mostrando como os currículos foram organizados com rigor e precisão absolutos, sempre em consonância com as grandes conquistas da Didática e da Psicologia da Aprendizagem. Foram criados, também, sistemas sofisticados de avaliação de aprendizagem e institucional.
Todos os recursos tecnológicos ao alcance foram utilizados: televisão, vídeo, computador e muitas outras maravilhas da tecnologia educacional.
Tudo dava nítida impressão de progresso e eficiência. Questão de organização e técnica. Não poderia haver falhas.

Começaram as aulas, de clareza mediana. Todo mundo entendia. Só que o corpo rejeitava. Depois de uma aula sobre o cheiro e o gosto bom da carniça, podiam-se ver grupinhos de pássaros que discretamente (para não ofender os mestres) vomitavam atrás das árvores. Por mais que fizessem ordem unida para aprender o gingado do urubu, bastava que se pilhassem fora da escola para que voltassem todos os velhos e detestáveis hábitos de andar. E o pavão e as araras não paravam de cochichar, caçoando da cor dos urubus: 'Preto é a cor mais bonita? Uma ova...' (IBIDEM, p.66)

O relato termina mostrando que a educação acabou se tornando um retumbante fracasso apesar dos métodos cada vez mais científicos e de estatísticas favoráveis.
Através desta narrativa, poucas palavras retratam aquilo que análises exaustivas comunicam de forma mais complicada. A educação brasileira vai mal e isto é dito por todos. Não raras vezes a culpa é atribuída aos alunos e sua falta de interesse. Mas para o filósofo, a recusa dos alunos é um sinal bastante saudável. Pois o corpo tem razões que a didática ignora. O tão propalado fracasso da educação brasileira é um sinal de esperança de que continuamos sendo capazes de fazer a distinção entre o que é bom para o corpo e o que só é bom para o lucro.

Esquecer depressa: não é esta a forma pela qual a cabeça vomita a comida de urubu que lhe foi imposta? Cursinho vestibular, exame vestibular: banquete de urubu? É fácil saber. Que se sirva a mesma comida, seis meses depois.
Uma ideia a ser explorada: para educar bem-te-vi é preciso gostar de bem-te-vi, respeitar o seu gosto, não ter projeto de transformá-lo em urubu. Um bem-te-vi será sempre um urubu de segunda categoria. Talvez, para se repensar a educação e o futuro da Ciência, devêssemos começar não dos currículos-cardápios, mas do desejo do corpo que se oferece à educação. É isto: começar do desejo... (ALVES, 1995-A, p.67)

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