quarta-feira, 25 de junho de 2014

Continuação - Pensamento Pedagógico de Rubem Alves




A pergunta fundamental que o educador deve se fazer é: o que estou ensinando é ferramenta? É brinquedo? Se não for, ele deve deixar de lado. Tal concepção educacional inspira-se em Santo Agostinho que lhe confere uma interpretação toda pessoal.

Santo Agostinho, uma das inteligências mais brilhantes que o mundo ocidental conheceu. Conhecedor dos segredos da alma humana e conhecedor dos mistérios divinos. Vou tentar resumir a sua filosofia de maneira simples e em linguagem moderna.
Segundo Santo Agostinho, todos os objetos do mundo estão divididos em duas casas. A primeira delas poderia ser denominada 'feira de utilidades', porque aí só se encontram coisas que são úteis, utilidade e utensílios. É o lugar dos pregos, dos martelos, dos serrotes, lápis, dos copos... coisas que podem ser usadas. É também a casa dos saberes, é a casa de ciência, porque a ciência é também uma ferramenta para ser usada. Mas o santo acrescenta que os objetos que estão nessa casa, na 'feira de utilidades', não têm o poder de nos dar felicidade, eles são apenas meios. E é por isso que nessa casa as pessoas não sorriem, todas elas são sérias, todas elas são adultas e quando porventura, uma criança ali entra, ela se transforma imediatamente num adulto.
A segunda casa é a casa de fruição, a 'feira das inutilidades'. Começa com um jardim. O jardim é uma coisa inútil. Num jardim não crescem repolhos. O jardim é lugar de beleza e a beleza não serve para nada.
Entra-se nesse lugar e nós encontramos as crianças rodando peões, empinando pipas, brincando de amarelinha, fazendo coisas absolutamente inúteis, que não servem para nada. Encontramos também os artistas, fazendo coisas inúteis, tocando violão, violino, cantando, coisas que não servem para nada. E também os namorados, se acariciando, se beijando, haveria coisa mais inútil que isso? E lá no meio uma árvore. Segundo a tradição ocidental, essa árvore era a da maçã. Eu pessoalmente prefiro imaginar que deva ser a árvore dos caquis, porque os caquis sugerem mais o deleite, o prazer, são mais lambuzados e menos sérios, mais sorridentes, mais brincalhões que as maçãs, que são sérias demais.
Ali todos tem o sorriso nos lábios, todos tem uma cara de felicidade. O lugar está cheio de crianças e adultos que ali entram e imediatamente são transformados em crianças, realizando-se então o conselho de Jesus Cristo, 'é preciso que nos transformemos em criança para descobrirmos a felicidade.' (Conversas com quem gosta de ensinar.Alves, Conversnado sobre educação Speculum vídeo, Campinas, 1995)

Essa reflexão remete-nos a uma outra metáfora recorrente no pensamento alvesiano: as duas caixas.
Para Rubem Alves, nosso corpo carrega duas caixas. Uma é a caixa das ferramentas, com tudo de que precisamos para solucionar as questões práticas. Só carregamos nesta caixa as ferramentas necessárias para as situações que estamos vivendo. É uma idiotice, por exemplo, um sujeito levar um furador de gelo para o deserto. Então, o corpo faz uma seleção do que é realmente útil. Na segunda caixa estão os brinquedos, tudo aquilo que, não sendo útil, nos dá prazer e alegria. Exemplos disso são a música, a poesia, a culinária, a dança e tantas outras coisas que não servem para nada, mas são fundamentais para a felicidade humana.
Tudo que é ferramenta, na experiência educacional não é esquecido. Porém, eles devem ser propostos aos alunos com competência. Nossas escolas

[...] nem sequer fazem a seleção correta das ferramentas. Como a gente aprende a lidar com elas? Eu aprendi a manejar um canivete porque vi meu pai descascando uma laranja e tive inveja daquilo. Ele então me ensinou a fazer o mesmo. Quando você busca ferramentas como resposta para problemas vitais, elas são maravilhosas e necessárias – e você percebe que não pode viver sem elas. Na escola, porém, o aluno entra numa oficina e dizem para ele: 'vamos aprender o que é martelo, serrote e prego'. As ferramentas são apresentadas de maneira abstrata e divorciada da vida e isso é chato. (ALVES, Revista Nova Escola, Maio de 2002, p.45)


Rubem Alves acredita que a caixa de brinquedos é praticamente muito pouco utilizada em nossas escolas.
Com essa metáfora, faz uma crítica contundente aos currículos e programas escolares.
Outra metáfora utilizada em sua crítica à Escola é a dos moluscos.
Segundo o filósofo, somos muito parecidos com os moluscos. Somos animais de corpo mole, indefesos e jogados numa natureza cheia de perigos e predadores. Se compararmos nosso corpo com os de outros animais, constataremos que ele é totalmente inadequado à luta pela vida. Ao observarmos outros animais, vemos que eles dispõem apenas do seu corpo para sobreviver e isso lhes basta. Seus corpos funcionam como ferramentas maravilhosas que cavam, voam, orientam-se, disfarçam-se, correm, reproduzem-se.
Com o homem a coisa é bem diferente. Se dependêssemos apenas de nossos corpos, teríamos vida curtíssima.

A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado, que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas como diz o ditado: 'é a necessidade que faz o sapo pular'. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. De nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento.
Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. (ALVES, Folha de São Paulo, 17/02/02, p.3)

O pensamento, muito mais que um simples processo lógico, é uma resposta aos desafios da vida. O pensamento se desenvolve como ferramenta a fim de que construamos as "conchas" que a natureza não nos deu para nos protegermos.
O corpo aprende para a vida. E é isso que confere sentido ao conhecimento. O que se aprende se torna uma ferramenta que gera poder. O corpo não aprende pelo simples ato de aprender.
Sem o desafio, a inteligência não se desenvolve. Assim, Rubem Alves faz uma crítica direta à Escola e ao ensino na forma como eles se apoiam em programas rígidos.
Os programas escolares se baseiam na convicção de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ignoram que o processo de aprendizagem só acontece em resposta aos desafios do cotidiano do educando. Essa é uma das principais razões do fracasso de nossas escolas. Isso explica também o sofrimento dos alunos e a sua justa recusa em aprender. Para a grande maioria dos alunos os momentos mais felizes da escola se dão quando toca o sinal de recreio ou de saída.

Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca, é esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido não fazia sentido. (IBIDEM)

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